1.31.2011

Talvez um dia…

Talvez um dia…
Sem a corrosão da tinta
No luar da face da lua
Fora do tempo e do espaço
Pintemos cabelos áureos
Anjos vestidos de azul
Na amargura da boca
Na via-láctea do céu
Com aquarelas de um pássaro
Sem o cansaço da unhas
E os olhos esfomeados
Cheios de tantos sonhos
E de navios sem porto
Possamos aprender quem somos
Como uma árvore no mar
Resplandecendo de frutos
Sem um barco às talhadas
Nas vagas da ácida polpa
A flor do vento nos baste
E o tédio se lave nas pálpebras!


manuel feliciano

1.26.2011

Flores de Outono

As folhas nas aquarelas das árvores
É a Primavera no sangue frio do Outono
Uma mulher dando à luz na maternidade
A palavra que só se escreve com um beijo
Quando nos unimos com mãos desagarradas
E abrimos o além com os olhos fechados
Desfolhamos sorrisos nas garras da chuva
Abraçamos-nos com os braços ausentes
Pintamos com o sol mãos no vapor das névoas
Tocamos jardins em desertos vermelhos
Semeamos o milho nas pedras da língua
E morremos em nervuras como quem nasce
Em pássaros de cores voando nas alturas!


manuel feliciano

1.18.2011

África Mulher

E as crianças de África desnudadas
Em aldeias pintadas no barro da minha boca
Com os sonhos nas estrelas e as mãos no mar
Lavam-me os olhos com mel de sereias
E cheias de fome plantam-me sorrisos
E correm na savana dos meus cabelos
E há dias ressequidos em folhas de embondeiros.

O médico não chegou à pele das flores tão brancas
Da barriga da mulher na minha consciência
Parindo-me uma paz fraterna de espigas douradas
Num corpo húmido sangrando-me na garganta
Vem-me uma dança de água do silêncio da carne
E cardumes de peixes por entre barrigas tão magras
Mais que a luz num porto desta velha Europa!

E há canoas nas mãos e cidades nos olhos
E gargalhadas de lenha ardendo em fogueiras
E homens bebendo a claridade dos astros
O azeite verde a escorrer das palmeiras
E um resto de pão cozido em asas de aves
A chuva desenhando faunas em faces sem folhas
E as rugas-canais que levam o amor ao mundo!


manuel feliciano

1.13.2011

No limbo das nuvens

Vi um luar de carne
Uma princesa numa faveira
Uma aeronave numa maçã
Ferros que me diziam ser homens
Homens abandonados em ferros
E flores nas gotas da chuva
O céu nas veredas da terra
O infinito em campo de arroz
Deus na lâmpada do meu cérebro
Mulheres que me lavavam dores
Num tanque de alucinações
Vi mãos de anjos em latas
Tréns chiando-me nas veias
Sobre os carris dos teus braços
Namorados em bancos de nuvens
As pedras parindo-me o sol
Segundos muito mais que séculos
O além oferecendo-me os seios
Num sorriso lambendo a fome
Vi tudo como quem está cego!


manuel feliciano

1.11.2011

Amor é fome

Meu amor, cada palavra que não dizes é-me um fruto aceso
Eu absorvo-te em nenufares para dentro de lugares secretos
Cada beijo é um grão de fome que me plantas no infinito
É no mar que me mastiga que eu te bebo toda em doçura
Tens ilhas de fogo nos braços que se ligam ao meu ombigo
Nos nossos corpos reluzem - ice-bergs presos em fendas
E por mais flores que me plantes sou campo sempre baldio
Eu gosto que nas línguas refluam caminhos que se perdem
Porque o amor é para se tragar com palavras indecifráveis
E se encontrar como o sol em mim por vestidos de nuvens
Com tons desconhecidos para que possamos viver pétalas
Em telas ainda em branco com o cheiro a tinta de estrelas.


manuel feliciano

O meu país não tem geografia

O meu país não tem geografia
Na rocha da palavra
É quando o mar me escreve
O teu amor na boca
E os braços baloiçam num corpo despido
Pintados com o som do sol
E os teus cabelos me ensinam
O teu barco no meu porto
É uma lua azul distante que escorrega
Por entre um beijo lento e perto
É um mundo aberto numa folha verde
Lisboa colhendo Nova Iorque em nós mesmos
É quando de mãos dadas aquecemos estrelas
E as levamos por lugares sem ilhas
Que engolimos apaixonados com os olhos
Enquanto me afogas por entre grutas de pétalas
Renasço no cosmos quando a tua face me queima!



manuel feliciano

1.07.2011

Horas abertas

Batem horas curvadas cheias de figos
É tempo de nascer numa boca seca
Comer sem fome caminhos tortuosos
Lamber a terra até te encontrar no grão
Ah amor! é na misera procura que me sabes
A uma laranja de sumo a arder ao sol
Degolei todos os Invernos despidos
Escarrei nos dias submissos que me arrastam
Escrevi a felicidade numa pedra de gelo
Mas com caracteres de ferro em fogo
Amo-te tanto que quebrei o aço dos braços da terra
E os telhados são cardumes de peixes no estômago
Finquei os olhos nas ventoinhas inertes dos montes
E a minha voz limpou as névoas com o teu nome
Não acho que a vida é para engelhar num bolso
A minha língua pinga no mel dos figos
Acendem-se pedras ao esmagar-me os dedos
Não quero que me cubram com guarda-chuvas
A vida amassa-se com dedos nos verbos da lama
Eu vou seguir pelo mar no barco de mim mesmo
Foda-se se fizeram greve no porto de Lisboa
Cansei-me de mãos amputadas sem um arranhão
De um charlatão vendendo-me sonhos à porta
Da tinta velha que cobre o céu esfarrapado
Dos olhos impressos nos papeis húmidos das paredes
Que me importa um homem de gravata numa rua
Como quem está pendurado num estendal de roupa
A vontade impressa em passaportes caducos
Duas nuvens dar-me-ao os braços sem carne
Até que os teus seios me queimem com amor a boca
Nem que uma flor pense com força eu e tu de mãos dadas
Sobre burilares de ondas ao som vermelho das línguas
Timbradas na espuma de seda que desfaz entre os dentes
Onde o teu vestido se solta em alvoradas de azuis!



manuel feliciano

Glória a Deus

Glória ao Corpo áureo de Deus
Numa árvore gritando frutos
À floresta na pétala da lágrima
Ao útero da chuva nas raizes
Às aves azuis que bebem dores
Às mãos húmidas na angústia!

Glória à beleza de um ninho
Ao sol que nasce nas mentes
Que unem lábios entre vidros
A um girassol na neve quente
A uma semente no azul do céu
À água que bebemos sem fonte!

Glória a uma areia pequena
Ao vento que não envelhece
A ti que nasceste do silêncio
Mais forte que todos os gritos
Quebrando as muralhas da noite
Aos anjos de luz de que és feito!



manuel feliciano

1.06.2011

poemas em 5 dias



Elegias



A tua mão branca


Dá-me a tua mão branca
A que chora com olhos à janela
Aquela que ninguém vê da rua
Beijada pelo sal dos astros
Que diz anjos com os lábios fechados
Na que ninguém semeia os dedos
E deita o rosto cansado
Que existe e é de mar e lua
E que os invisuais vêem nitidamente
Dá-me a tua mão branca
E acredita que também é minha
E deixa-me escutar os deuses nos nódulos
E auroras que outras mãos esmagam
A que dá frutos sem precisar de terra
De beijos lábios e sorrisos
E voemos em asas de adorinhas.





manuel feliciano






A riqueza





A riqueza! A tão célebre riqueza
É-me o sol parido na boca
A minha alma no bico dos pássaros
As minhas costas pasto de ovelhas
É um ribeiro seco de sorrisos cheio
O meu cérebro em gargantas amargas
As minhas mãos prenhas nas pedras
Os meus olhos vestidos de vênus
Os meus pés dançando nas vagas
O meu corpo despido nas árvores
Sangrando aneis fulgentes de estrelas.






manuel feliciano










Os grandes amores


Os grandes amores só são grandes porque são cegos
Nenhum ser amaria se realmente visse
Os corpos e as almas deturpadas dentro de anjos

As mulheres que me diziam sobejamente belas
Vi-as naturalmente em leitos imundos
E as mais feias tinham requintes de deusas

Não falo daquelas que colhi nas têmporas das nuvens
Nem em verdes silvados de amoras
Senão com quem troquei beijos de saliva e carne
Escritos com a tinta húmida dos cabelos

Os quais descongelaram estátuas de mármore
E nos prenderam com as mãos voando em aves
Numa ilha inacessível de condenados!





manuel feliciano






A puta da vida



Como é desumana a puta da vida
Tão desumana que não merece um verso
Nem saliva lambendo flores de pedra
Nem mãos aos céus se os deuses não esperam
E ruas abertas que dão para braços sem nada
Para quê lhe sorrir se é uma fisga apontada
Eu prefiro-lhe dormir nas brasas das ancas
Mas tenho-lhe rezado neste mar incauto
Enquanto navios partem cansados na areia
Roucos e brancos em ondas por telhados imóveis
Com o destino para húmidos lugares secretos
Que fiz da amargura uma ilha cheia de tudo
E de suspiros de ferro uma luz na garganta
Como é desumana a puta da vida
A puta da vida como é desumana
E enquanto isto visto-me com mel e pimenta
E há rios tão sujos que me mataram a sede
E na roda viva de ouro em cima de um jumento
O azul tem rebuçados para chupar só hoje
E uma gata ao colo parece andar já prenha!



manuel feliciano




O Corpo é um verme


Um fato no qual não caibo
De que importa ser belo
Se me aperta no colo
O verme que o sol vomita
Bordado a pão de ló na lapela
Fujo para que não me encontre
Porque quero ser outro desenho
Que ninguém custurou em Paris
Enquanto lhe cuspo o pó da traça
Que trás dentadas de um cão
Desconheço quem mo deu
Não mo passem a ferro
Que a vida é engelhada
Mas se mo deram com gosto
Deixa-o chupar o desgosto
No céu estrelado do chão
Desaperta-mo em gritos de gozo
Em chuva lambendo-o tão bem!



Manuel feliciano







Os teus cabelos




Os teus cabelos escrevem-se com sorrisos de deusas
Tocam-se em laranjas e gomos de guitarras
Bebem-se nas águas das vogais do olhos
Que só tu e eu despimos em estrelas fulgentes
E tu amor, quando me estendes os teus braços
E eu corro como uma criança aturdida para o teu colo
Os teus cabelos voam-me, mas não se dizem com os lábios
Senão com corações que batem desenhados sobre nuvens
Sentem-se como húmidos bejos nas asas de pássaros
Amam-se com a terra e a chuva que sedentos se gretam
Cada fio é um pedaço de voz nas mãos quentes do sol
São uma pedra susurrada onde guardamos perfumes
Onde nascemos e morremos todos os dias como o tempo
Enquanto nossas bocas trémulas se põem na letra c
E todos os outros caracteres são os lençóis de nossa cama!





Autoria de manuel feliciano