6.29.2014

Reparte
porque é aí que está o canto
o sol
a chuva
e a lua
todo o mar
e a tua altura
os teus braços
o teu tronco
e a cintura
o teu rosto sobre o meu
reparte
que aí que está a vida
a erva
de verde colorida
a semente
e o amor
Deus que faz nascer
o beijo e o sabor
a vida que se prolonga
nas pálpebras ao fechar
o prazer
o feto
a flor
a noite
e o amanhecer
e o mundo que há-de vir.

Ámen

Manuel Feliciano
Quão bonito é o teu reino
o teu trono 
o teu tronco
os teus braços 
os teus cabelos
o teu rosto
o teu perfume 
as tuas palavras 
a levar-me a água
sobre o meu silvado
a brotar-me amoras
a tua boca ao amanhecer
A criar astros
do nada
na minha mão repousada
Quão bonito é o que é só teu
o que a lua desconhece
A tua cintura
luar de Agosto
a tua forma própria de abrir os olhos
de movimentar o corpo
de abrir os braços
de movimentar a brisa
de chamar o mar
de espalhar a areia
de chover na terra
de semear sementes
de erguer o sol
a tua planície, o teu todo
O teu colo!

Manuel Feliciano

6.12.2014

Os barcos e o rio que se repetem aos meus ombros neste Douro, só o teu corpo, seara que me talha o beijo, O que me traz e leva é este chão, esta planura cheia de brisa de ti. Quem me dera os teus cabelos e as tuas costas, que eu já não tenho, e tenho sempre semeados dentro de mim.
Quem me dera fosse um beijo a saber a não saber, e nessa busca húmida a cheirar a boca tenra e a ar fresco do mar, fosse um fruto inteiro por desvendar em gotículas de saliva. Quem me dera essa luz, fosse o teu rosto inteiro a não acabar junto do meu.
Eu não sei o que são barcos, porque barco só és tu, eu sou mero naufrágio ao leme das tuas mãos, o rio o teu colo profundo, a cidade inteira a vergar de luz, quando fecho os olhos ainda és tu, ervas e sementes que não morrem num verão quente, frutos que se recolhem nas flores.
Eu não consigo imaginar um cais um rio, uma cidade, um barco fora dos teus olhos, da tua boca a tocar a minha, porque um barco é sempre que as tuas mãos pousam, o mar alastra e as gaivotas voam, é sempre que os jardins mais adormecidos acordam, entre as névoas e me dão sol. Tenho sede de ti como a primavera que não traz verão, só fruto a beber na flor. A minha garganta é uma nuvem que se desfaz no perfume do teu olhar. Morro-me a cada braço de árvore que cresce, a cada fonte que jorra a sua água, como quem nasce dentro de ti, Tu és quem é tudo, nesse silêncio profundo que me dói de flor arrancada antes da primavera a arder-me , Amo-te são os únicos barcos que existem, com os olhos suspensos no movimento do teu corpo a florirem na tua boca. Tu és a água que alimenta a fundura dos rios, os jardins desabitados, em mim sei que floresces, és ninho e pássaro, mesmo se as árvores já morreram tu permaneces inteira como a primeira árvore a rasgar-me a pele, a lascar-me a boca, a agarrar-se-me ao coração sem barcos na profundidade da tua água respiro-te e pintas de verde as ervas secas dos meus lábios.

Manuel Feliciano

6.04.2014

As rosas voltam ao seu inicio

Quando passares por um velho na tua rua não lhe digas nada. Fecha os olhos e adormece. Experimenta dar-lhe a mão, vais querer supostamente que ele te mostre as ruínas de uma antiga qualquer civilização.
Mas, no mais íntimo silêncio ouvirás os pássaros experimentando as asas. Das pétalas das Rosas mais douradas pelo sol, sentirás a chuva, um fresco de boca a humedecer a terra e o sol tão mais fértil .
A minha avó tem 92 anos, do seu olhar  eu não consigo ver o fundo da rua, a altura das árvores, a largura da janela, só a planura do mar entrando em suas mãos, e as suas pernas de menina, correndo sobre a areia.
O seu olhar fita as raízes do sol que dormem em silêncio e a sua boca cheira a ninho e rosas. Agora a minha avó é uma menina nos braços de sua própria mãe desenhando rosas nos seus seios, bebendo da própria eternidade, eu não consigo ver-lhe as rugas, os seus cabelos brancos, os seus passos lentos.
A minha avó é Portugal, uma caravela inteira, o seu corpo estende-se ao mundo, é sempre que eu a sonho e sinto, não traz o tempo dentro dela, é um rio permanente que não desagua.
Tomo-lhe a mão, desço a escadas até à sua altura, o céu é o estremecer dos seus próprios olhos, como quem ainda nasce, desaperta o seu sorriso, pelo vestido da lua, e pouco a pouco as suas cicatrizes mais profundas desvanecem entre o colorido das flores e os ramos no calor da face, as rosas menstruam-se e voltam ao seu inicio.

Manuel Feliciano