7.26.2019

Felizmente há luar

A noite é velha
De sílabas cansadas
De flor a crestar
O medo
A voz enferrujada
Navios roucos
Pousados
Sobre a areia
Rosa divina
As tuas mãos são o leme
Contra a miséria
A pobreza
E a opressão
Desata o povo
Felizmente há luar
Rosas nos seios
A esperança
E o amanhã
O fogo que nos quer
Viver
A boca
Quente
O orvalho
A paz
O mar
A pele
As costas
E a redenção
Ardem cadeiras
E moedas no chão
As grades
O cárcere
Somos o vinho
Que ferve pelos bagos
Dança comigo
Põe a tua saia verde
Calam-se os sinos
E os Reis do Rossio
Tu és Paris
E e eu a Revolução
A queda da Bastilha
A voz nova que nasce
O fogo
A redenção
O povo
A rua  menstruada
A voz que sonha
O feto
Vencer a escuridão.


Manuel Luís Feliciano

7.19.2019

Douro - Loivos da Ribeira




Douro - Loivos da Ribeira

Os teus olhos
Pousaram nos meus
E os meus incendiaram-se
Ficaram com medo de entrar
Nas janelas dos teus
De quem olha um Jardim
De quem se quer sentar
E sentir a paz das oliveiras
Eu fiquei tão sereno
Porque encontrei em ti a colina
O deslizar do vale
E o rio Douro a correr-nos
A mansidão das ervas
Os teus braços tão leves acorrentar-me
E a tua pele terra de brisa
À espera de um beijo
Que te abrisse o voo
O céu que atravessa a ponte da Ermida
O teu olhar
Da humidade do Douro
Abraço
Do amanhecer
Ternura
Suspiro do que volta a nascer
O cheiro das laranjas dos teus dedos
O amor
A peregrinação de uma encosta
Que nos mostre o mar
E no fundo
Do nosso olhar e da nossa carne
Deus em nós reunido
Cada sílaba que não conseguimos dizer
Mas que vivenciamos
A origem do mundo
O infinito das tuas pálpebras
Eram de carne e não eram de carne
Os teus cabelos eram tão de luz
Mais longos que o mundo
E o teu rosto
O milagre da música
Amor
Big bang
Eu amo-te tanto
Que ouço as tuas flores dentro de mim
O céu a iniciar-se
A beleza de todos os animais
O fogo que traz a vida
O Deus que há-de vir
Verdade dentro de nós
Poema
Segredo
Beijo!

Manuel Luís Feliciano



7.18.2019

A selva

Esta Selva
A que deram o nome de Portugal
Elefante sem direito a terra
Maranhão
Índios exaustos na guerra
Dos cafezais
Branco explorador
Negro escravo
Não é cultura
Nem amor
É tortura
Sem pudor
Ideologia
Se ao menos lavasses o rosto
No rio Jordão
Se fosses sangue do mesmo sangue
Se fosses amor do mesmo amor
E sentir de todo o sentir
Vivesses nos ombros
E os ombros vivessem em ti
Tu serias Portugal
Terias fado e lágrimas
Sentisses a fome
E fosses a fome
Olhasses os que choram
E fosses os que choram
Olhasses os mendigos
E soubesses ser a rosa
Mística
De sal
E mar para todos
Aos que sofrem
Seres rio e verdade
Aos que que nada têm
Seres caravela
Luz e leme
País de tiranos
O mundo impuro
Consente
Eu não
E em cada canto das Cidades
Gorilas por debaixo das Pontes
São animais sem país
Sem língua
Identidade
Cidadania
Não entram na conta
Do político
Malabarista
Da esquizofrenia
Alienação
São carne para matar
Os sem braços
E pernas
Animais de outra espécie
Na selva do capital
Não prosperam
E sonham
Minguam o corpo
Não há bananas
São vendaveis!
Quem te faz a cama
E te mexe a lama
E nela se enlama
É o político
Que vai morrer
Ao relento do céu
Do mesmo jeito que o gorila
Virar merda
Ser cagalhão
De nada lhe vale o tostão
Astrolábio sem direção
Sem estatuto
E ideologia
Dar o tributo ao chão.

Manuel Luís Pereira Feliciano

7.13.2019

Metamorfose

Metamorfose

Greta
Era de ti o beijo
Do bicho da seda
À borboleta
Em movimentos lentos
Os teus braços velas
Nas ondas do corpo
Cada carícia
Da língua ao pescoço
Asas
Voo
Cativeiro de flores
Gemido
A descer-te pelos ombros
À velocidade do fogo
A reparar-te as ruínas
Dos seios
Pétalas por pétalas
Do verão
À primavera
A luz
A chamar-te
O movimento das ancas
Inóxidadas
A raíz
À regressar à semente
Ao sémen
À púbis
No veludo da carne
Rio estendido
Intermitência
Entre o antes e o depois
O sono
Quarto aberto
O tempo a lamber os frutos
Um Deus na tua carne
A minha boca a gemer-te
Do sumo para a laranja
Da laranja para o arco-íris
Fora do sistema
Na saliva que corta o fogo
Do fogo que ateia a saliva
O limbo
Frémito de ternura
Nas tuas costas
Pernoitadas por dedos aflitos
Insecto que ao beber da flor
É mar a deitar-se no sol
Eixo ininterrupto
Da casa para o trabalho
Da luz que mata a escuridão
E não estorva
No teu corpo labirinto
(In)hóstil
Inteligível
Jardim
Dos cabelos que não emergem
Na brisa
Os nossos lábios
Lenha inconsumível
Cratera
Infinitude
A fechar-me
A abrir-te
A nascer-me
Intocada
Útil
Vai e vem
Regresso a casa.

Manuel Luís Feliciano

7.12.2019

Júlio Cortazar- A Auto-estrada do sul


Em Fontainebleau
Corrente de fogo
Flor na auto-estrada
A rapariga do Dauphine
Na saia do tempo
Corpo a perder de vista
Alimentou as rosas
A inocência
O Jardim
Deu de Beber à noite
E à manhã
Desmanchou no travessão
A cólera
Nos seus braços lânguidos
Fronteira
E além
Amadureceu o frio
Arrefeceu o sol
Perfilhou os ocupantes
Do trânsito parado
Encontro da tribo
Da minha boca e a tua
Borboleta desamparada
No pára-brisas
Relógio sem ponteiros
Soluço da brisa
Acidente
Espasmo das nuvens
A compaixão das rosas
As tuas mãos as de todos
A salvação
Do meu olhar e o teu
Acorrentados
Rectrovisores
De longo alcance
Todos connosco
Em caravana
A ilusão do voo
Nas tuas ancas
Ciclo do fogo
Olhar de anjo
Filho a nascer
Esperança
Terra prometida
De mãos dadas em direção ao sul
Sonho do amor
miragem
Espuma de alfazema
Água quente
Pelo peito e pernas
E o vinho
A fermentar o amor
Sobrevivemos à sede
Paris
Nos teus seios límpidos
Conheço-te
Ao arranque dos carros
Que se perdem
Avançam
Sem olhar para trás
O ciclo das asas
A fragmentação dos corpos
Desconhecidos
Cada rosa por si
As silvas dos lábios
Que ainda querem os meus
Inflamados
O meu olhar e o teu
Desacorrentam-se
Do mundo inteiro
Utopia
Adormeço nos teus cabelos
Levo-te por dentro
Flor de gasolina
Cano de Escape
Sonho
Peregrinação
Alegria de chegar
Desencontro.

Manuel Luís Feliciano

7.08.2019


Jesus Cristo

Porque te deixaram morrer

A voz abrindo-se na folhagem das pedras

As palavras nos ouvidos dourados das areias

O coração sempre do mesmo lado

O pregos no lugar dos dedos

As andorinhas piando na boca

O amor - mãe em carne viva

o meu coração não tem lugar para o teu fim

Pensas que faço uma vénia à múmia do mundo?


Clamo-te - E não te ouço

Num sorriso edificado

As tuas pernas sem mais mar

Uma árvore despida - Barco do teu dorso

Sem as moedas de César

Só espada que nada sabe da ternura

Os lábios que tudo sabem sobre a espada

Que Deus é esse que te mata de amor?


peco
Como eu peco meu Deus
no mais sujo de mim
há uma flor branca
E os teus pés lugar para eu chorar
Os cabelos de Madalena
doendo-me no pescoço


Nenhum Deus merece a tua morte

nem a tua palavra

nem o teu rosto

Só amoras nessa ferida tão tenra

na crusta dos olhos

Só os teus pés cansados da terra

A aliviarem-me - os lábios da ceia

de Crianças em eiras de milho

Dobando o mar em corações de papoilas

No beiral dos pássaros

uma árvore à espera da porta da tua mão

Que entre por esta boca tão pouca!


Manuel Luís Feliciano
Entre a sombra e o homem
Entre o homem e a sombra
Quero a tua mão fresca de fruto
Que me tire daqui
Das areias finas
Do teu corpo escaldante
A terra
Deserto
A música da tua saliva
Só a rosa da tua boca
Beijar-te a púbis
Ser rio
Decompõe as palavras
O grito das flores
A beijar o verão
O sol que não chora
As ruas em betão
Os frutos a gritar o Outono
O aroma das tuas pernas
Salva-me
Sabes a mel
Criação da água
Beijo
Desmoldura
Pele fresca da chuva
Abraço-te
Decompõe-me a noite
Decompõe-me o dia
As ideias que cegam
O princípio
E o fim
As frases que estão presas
E os teus seios o jardim
Liberdade
Veredas sem caminho
As palavras que correm
No estalar do amor
Voz  do poema da tua boca
Abrigo
Sem lugar.

Manuel Luís Feliciano

7.03.2019

Portugal - Mercado negro

Portugal
País do mercado negro
Tudo é vendável
Vende-se as leis
A constituição
Os direitos
Até a compaixão
Se tens dinheiro
Há leite que escorre pelos seios
Se não tens dinheiro
Já não és cidadão
És moço cangalheiro
Se te chegas à frente
Jogas o pião
Se não te podes chegar
Cai a noite
Sobre o teu lar
Ficam os barcos a cantar
Com a ferrugem
Ao luar
E a guerra no coração.

Manuel Luís Feliciano

Portugal - Desrespeita as pessoas na precariedade e doença

As tuas leis
São de um fado
Que não tem reis
Só bóis e um arado
E cornos da paciência
Do homem
Que morre à míngua
Do mendigo que dorme na rua
Do homem acidentado
À volta da nora
À volta da nora
Desamparado e entregue a si
A comer de um pai que já não tem
Ao qual o Estado te obriga
Do pouco que te podem dar
Porque o Estado fugiu
Está na puta que o pariu
Não cumpre a santidade
Nem a lei da Constituição
E cede à corrupção
Ó flor da economia!
Somos todos portugueses
O povo come da pia
O mediano fica sem nada
Coitado do inválido
Do homem que adoeceu
Não tem direito morreu
Contra esta máquina que mata
Estado dos nossos impostos
Do diabo do dinheiro
O Estado és tu e sou eu
Não é de nenhum barqueiro
De um homem por fazer
Quer-se um homem inteiro
Não um pseudo burguês
Pago à conta de um português
De um homem que caga
E borra o cú como todo o freguês
Queremos a sanidade e o bem
Não te apoderes! Oh tirano!
E dizes que nos fazes leis?
Sem  sequer nos inquirires
Tu crias-nos agregados
Nossos corpos já criados
Leis de engaiolados
Já velhos por doença
Sem direitos e maltratados
E nos obriga a comer do pouco dos nossos pais?
E a nossa liberdade, e os direitos na doença?
Direitos a não ter direitos
Direitos à dignidade depois da morte
Santos deputados
Trabalhadores do estado e do privado
A quem servis? A Deus ou ao diabo?
Deputados dos cemitérios
A honra que te seja feita! Há fome!
 E desavença nos lares
Abram as gaiolas da liberdade
A que te subjugam
Ó Estado desumano
Indignem-se portugueses
Escarrem nas botas dos deputados
É dia de feira! Políticos da mentira
Portugal como as ervas para toda a terra
País de cidadãos humilhados
Não cedeis a esta tirania, de gente que nos espolia, e nos trata por vilãos.
E falam em democracia?

A sombra da Europa.
Olhai para o chão malfeitores



Manuel Luís Feliciano

7.02.2019

Portugal

Nasce o sol
Na púbis da montanha
Há erva que cresce
E alegra a terra
No corpo maduro
No suspiro de orvalho
A formiga trabalha
A farinha
E o pão
Que cresta na boca
O gemido do dia
E outras tantas caem
Pelos seios inclinados
À guerra
À tortura
Ao silêncio
À indiferença
Ao medo
Se a formiga não tem pernas
É tirano o beijo
A lei
A ferida
Que esmaga de desejo
A voz dentro das flores
O sol entrecolhido
A luz de não seres nada
No mar que está parado
Portugal não chora!

Manuel Luís Feliciano

É neste silêncio tão de árvore
De cinza
Que os teus braços contra
o  meu peito
de nuvem mordida
de chuva
semeiam as primeiras folhas
E o teu fogo entra na raiz

E na saliva que corre
O céu é inteiro
O teu corpo quente
E as aves, que se foram
parem-me a luz
a tua brisa
E as ameixas rosas dos teus lábios


O teu nome
Escorre-me pela garganta
Desagua pela tua
Cintura
vem-me o cheiro
Do teu ventre
E a tua mão a nascer na minha

Os teus cabelos
ainda florescem
E chamam as abelhas
Tenras
Às flores com que te trago
Neste silêncio.

Manuel Feliciano

Árvore

Subi ao cimo de uma árvore esguia
Contei-lhe a angústia que o meu peito sente
Ela cantou comigo enternecida
Não tendo a solidão de toda a gente

Olhando-me no rosto, fez-me querer
Que ela não tem dor nem solidão
E para além do que dói é barco a vencer
A ferrugem do barco no coração

Eu fiquei contente, esqueci o mundo
Senti-me alto no seu enaltecer
Perdi o medo que tenho de viver.

Ao ver-te enraizada lá no fundo
É no céu que almejas o teu viver
Nos ramos consegues o mundo conter.


Manuel Luís Feliciano

7.01.2019

Sou grito apenas que se levanta
Não posso ser teu porque sou de ninguém
Sou ave que voa e se encanta
Ao pousar-te és-me o céu mais além

Como um salteador que vai vagueando
No trigo dos teus cabelos se abraça
No tempo em que o teu olhar me enlaça
E os meus lábios com os teus vão chorando

Uma gaivota que grita dentro de mim
Sou como o vento que não consegue parar
Dentro dos teus olhos a naufragar

Voando ao partir longe de ti
És-me o perto das tuas mãos a chamar
Proa de seio pelo amor a marear.

Manuel Luís Feliciano