Porque sei
Que não sou mais importante
Que uma erva ou flor
Que um animal que chora
A liberdade e a dor
De um grito em desespero
De não ser pleno
Também eu quero morrer
Com a mesma alegria
Do romper da flor.
Manuel Luís Feliciano
Quero sair daqui, daqui, daqui
Já faz muito tempo
A primavera florir
O gelo a quebrar-se
Das nuvens do céu
A chuva a fluir
Na sombra apressada
Aqui não é tudo
Aqui não é nada
Daqui quero o vento
A risada do mar
A água que galga
Do tempo nem uma folha no chão
Nem o espelho da cara
A abrir memória
O encontro de nada.
Manuel Luís Feliciano
A liberdade
É uma palavra inútil
No seu significado
E o que é útil
É a forma como cada qual a transfigura
Os pedaços de um rio férreo
Em rosa
Água
Ou barco
No jardim da memória
Que vamos colocando com as mãos
Num lugar
Onde nem nós mesmos o conhecemos
E desfigurando o óbvio
Enfrentando com loucura o mundo
A que estamos presos
viajamos
Rasgamos essa palavra
Que não vale de nada
Se não houver o sonho
A força
A embriaguez do amor
Um espaço interior
Onde caminhamos sem as mãos presas
A coragem contra urgência do mundo
Para acendermos a luz no corredor de uma manhã
Contra a própria cegueira
O propósito do caminho no incerto
De uma flor a dar-te a mão
Por entre o nevoeiro.
Manuel Luís Feliciano
Um grão semeado na terra
Talvez seja o que me falte
Ou não...
Nada é simples e claro
A nitidez é uma forma de nuvem
Se admitirmos que o grão precisa da terra
Para germinar a planta
E a planta gerar o grão
Mas o que pode o grão
Ante o alimento da terra?
Talvez precise de se cumprir
E de se deixar viver
Sem qualquer tipo de entendimento
Sem nenhuma obrigação
E compreensão bíblica
É por isso que os pássaros
Erguem a escassez de luz
Em todos os corações humanos
Migram
Deixam-se ir obedientes
À força da natureza
Morrem
E voltam
Todas as primaveras
Ante toda a falência do céu
À sua volta...
Manuel Luís Feliciano
Não sou pessoa
sou natureza
Quem me dera ser
Primavera no inverno
E chuva fresca num verão
Se em mim
Estivesse o segredo de transitar a luz
De saber viver o equinócio
E esperar a lentidão da luz
Mas não...
As sombras apoderam-se de mim
Talvez não querer aprender
Ou fingir de que não sei aprender
Ou não me implicar completamente com as coisas
É um estádio de consciência
De fugir das sombras
Tudo nasce da Inutilidade do grito
É não querer ser maior
Que a própria pequenez
Da mecânica do universo
É um processo de fuga
É a fadiga das mesmas linhas férreas
Dos mesmos horários e combóios
É não saber ter uma vida paralela
Ao fantasma do mundo
É não saber sequer
Aqui e acolá colher flores
Sem as arrancar demasiadamente.
Manuel Luís Feliciano
A beleza dela, é a própria transcendência dela, eu amo-a, pode ser uma ideia, ou conceito de amor, olhar para ela, e ver que ela é a própria natureza, à sua aproximação, eu sinto a falésia onde vislumbro o mar, a beleza da areia, a rebentação das ondas, nasce-me a inquietação, o perfume do sal, a distância do céu, que por estar mais perto não deixa de estar mais longe, que por ser tão real, não deixa de ser irreal, que por ser física não deixa de ser metafísica, porque eu sei que por dentro das suas pálpebras, há outros mundos e dinâmicas do amanhecer e anoitecer, talvez eu tenha medo do infinito, e me arrepie à luz de um sorriso, quando olho para ti na verdade eu morro. Até o franzir dos teus olhos têm Outonos, e o desfolhar de amanheceres, hoje sei que o medo de pousar os meus olhos nos teus, é de saber que a natureza me vive, e eu realmente não a vivo, porque tenho medo de pensar que sou imaterial, sou da natureza do sonho como a natureza, ainda não aprendi a ser real, a pousar os pés no chão e seguir em frente, ainda não sei morrer completamente ao teu beijo, sei que és uma criação de Deus e a tua pele, transcende todo o meu conhecimento, perante ti, sinto-me um mendigo, sou saliva do teu beijo, idioma do teu fogo, queria saber arder na frescura do teu aroma, ser terra da tua terra, em mim um cabelo teu pode ser um rio, uma árvore, o voar de um pássaro, queria saber não me magoar ao relâmpago da tua voz. Tu és a fome que eu tenho de Deus, a incerteza de um poema, num mundo demasiado certo, eu vivo na imaterialidade de dois mundos, quando te beijo não sinto a carne, somente o belo de um navio atravessar o azul, sinto o cosmos a arder em mim, não tenho a percepção das formas, só um grito de azul e de lágrima. Ainda não sei lidar com palavras pequenas e sentimentos pequenos, tudo em mim ganha altura, magoo-me ao amor mecânico das fábricas, a todas as obrigações sociais, a todos os gestos repetitivos, a angústia de não saber vestir outros que não seja eu mesmo, ainda não tenho a pequenez de ser uma ou mais pessoas, por enquanto só sou um desconhecido à procura nem eu mesmo sei de que.
Manuel Luís Feliciano
Sinto vontade de te levar pela rua
desfrutar do calor da tua mão
Que cheira a primavera
sei que a tua mão me liga à tua árvore
mas como eu preso a liberdade
eu quero que o meu amor por ti
te liberte os ramos
porque sei que cada coisa
É única em si mesma
E morre quando a aprisionamos
O que eu mais quero
é que caminhes
sem sentires o peso dos teus pés
Numa estrada óbvia
porque tu tens vida e amor dentro do amor
E o teu amor é mais intenso
quando ardo dentro de ti
e te liberto a mão
Há todo um caminho desconhecido
Dentro de ti
sei que és uma luz
como todas as luzes
não precisas das mãos que te prendam
senão dos olhos
Que te deixem partir pelas tuas ruas.
Manuel Luís Feliciano
Percebi a estupidez de às vezes ser estúpido
Porque não admitir a estupidez?
A estupidez faz parte de um confronto
Entre a inteligência e a falta de delicadeza
Será que a estupidez não é demasiado Estúpida para lhe dar uma forma
Um corpo de um ser biológico
Um discernimento demasiado afetuoso
E até mesmo um lugar no dicionário
Uma rua onde ela insinua o seu corpo?
A estupidez deve servir para se ser estúpido
Mas nunca para abordar a estupidez
Dar-lhe uma mesa ou uma cadeira
Porque abordar a estupidez é de alguma
forma ser-se estúpido
Que ao menos possa ser estúpido por um amor
De uma estupidez romantizada
Por uma flor que mereça a minha irracionalidade racional
O meu fervor mais envolvente no seio de uma rosa
Ou o meu eu mais amoroso, nunca algo tão vulgar como a própria estupidez
Nunca algo tão térreo que mereça o meu génio, ou a minha delicadeza.
Manuel Luís Feliciano
Poema
Mais importante que a minha voz
É uma noite de silêncio
E mais perfeita que a minha voz
São as pétalas de uma rosa no chão
Não sou mais útil que uma folha de Outono
Nem mais importante que uma pedra
Não sou grande no meio de grandes
Nem pequeno no meio de pequenos
Sou uma parte do todo
E o todo de uma parte
Tenho o peso do mundo
E a leveza de uma brisa
Tenho o mesmo sorriso e as angústias dos demais
Não sou um ser perfeito, assumo a minha parte de imperfeição
Não uso a minha voz para me empoderar
É uma necessidade como chover
Que a minha voz não tenha medo
Mas também não ofenda
De passar em silêncio sem magoar o chão
Que a minha voz não seja ouvida
Para que outras se ouçam
Que a minha voz se cale
Para que outras nasçam
Que a minha voz seja humilde
E mais pequena que o chão
Mais importante que a minha voz é o meu semelhante
Mais importante que a minha voz é um mendigo
Mais importante que a minha voz é o amor
Mais importante que a minha voz é o sol
Mais importante que a minha voz é a tua voz
Mais importante que a minha voz é o mar
Como todas as partículas que compõem o mundo
Mais importante do que a minha voz é a paz na Palestina
Mais importante que a minha voz é a noite
Mais importante que a minha voz é o teu sorriso
Mais importante que a minha voz são as abelhas nas flores
Mais importante que a minha voz é um rio
O perfume de uma rosa
O coração de uma erva
Que a minha voz ouça mais do que diz
Que a minha voz não exista
Quando o coração transgride
Que a minha voz seja perdoada por Deus
Quando omite o amor ou a compaixão
Mais importante que a minha voz
É perceber que erro, é pedir perdão
À vastidão de silêncio
Em frente dos meus olhos!
Manuel Luís Feliciano
Está tão lindo o céu
Tão belo e inteiro
Dentro do teu olhar
Rio de Janeiro
Se me deres o beijo
Eu serei o mar
A onda a cavalgar
O movimento inteiro
Se me deres a mão
Eu serei a rua
Onde ninguém chora
Arara a voar
Do passarinheiro
A terra a quebrar
O sol a ir-se embora
Se me deres o olhar
Eu serei Leblon
Os passos fugidios
A circulação das rosas
Na náusea dos corpos
Em ti a renovar-se
A frescura do ar
A percorrer-te o azul
A leveza das ondas
Na espuma dos dias
As mágoas não mais dentro
Cadeado de água
Se me deres o amor
Eu serei semente
A barra da Tijuca
A ferida ausente
A terra em gestação
O fogo a recolher-se
A abrir-se em ti
A alegria inteira
Fora de outro tempo
Relógios de luar
Tempo permanente
Em copacabana
Areia em flor
Entre mim e ti
O amor a expandir-se
Rio confluente
Margem desfeita.
Manuel Luís Feliciano
Hei-de amar uma pedra
Do silêncio áspero soprar-lhe a cabeceira
Com os lábios inflamados
Descongelar-lhe os músculos
Das ancas retesadas
Há-de brotar-lhe um rio sem margens
Cheio de frases a escorrer sol para todos
E despertar todas as coisas inertes
Em recantos longínquos esquecidas
Nas flores erigidas nos seios
Exclamará sempre um sorriso
Hei-de gritar-lhe
Nos lábios as palavras ressequidas
Em delíquios cheios de aromas
Corpo em flor
Mãos que transbordam
O calor da pele
Barco de brisa
Abraço a desfazer-se
Pedra de amor...
Manuel Luís Feliciano
Quando quiseres dizer que me amas, diz mãe
E o coração saber-te-à por inteiro
Não me abraces
Diz amor em gestação
Depois acaricia o ventre em flor
A semente que se inicia
A brisa que te alimenta
O teu olhar em outro olhar
Não me beijes
Sente a luz do teu ventre
A iluminar-te sem peso
E um pouco mais de ti a estender-se
O teu eu em outro eu
Uma voz a querer-te
Se por ventura chorares
É porque às vezes o choro
É uma forma de sorrir profunda
O amor a irromper-se
Numa espuma de beijos
No umbigo a prende-se...
Ao choro dos teus lábios
Quando quiseres dizer que me amas diz mãe
Di-lo com o mar a bater-te contra os lábios
Como uma luz dentro de outra luz
O céu a criar-se ainda sem nenhuma estrela
O amor a romper do chão das palavras
O amor é morrer para se ser outro...
Manuel Luís Feliciano
Não sei se chego a ser eu
Neste encontro perfeito
De seres desencontrados
Rosa
Ou nada
Não conheço verdade alguma
E se as conheço
Elas têm uma vida própria
Podem tomar dentro de mim
A forma de relâmpagos
Ou de mares
O Choro
Ou tristeza
Para mim são lugares
Jardins dos quais não sei fugir
Transbordo todas as frases
Do manual das ruas
Da precisão das árvores
O equilíbrio para mim
É uma roda às voltas
As coisas não me cabem dentro
Como dentro das caixas do mundo
Sou de barcos
De Viagens inseguras
Não de casas prontas a habitar.
Deixo-me ir
Com muito custo
A descer pelas escadas
Em direção ao mar
Não trago no bolso um livro de instruções
Truques fáceis
Tão úteis à culinária
E aos fazedores da alegria e do tempo.
Manuel Luís Feliciano
Esta noite
Encosto o meu colo
Ao teu colo
E deixo que as tuas mãos
Me conduzam a um país
Muros de outros muros
Línguas de outros mares
Amor - Terra sem fronteiras
Soluço
Frémito de água
Tremura
Casa de luar
Nos teus olhos o além
Os muros caídos
O rasgar de asas
O meu peito no teu
A minha boca na tua
Planalto
Rua sem clausura
Encontro
País de outras rosas
Fogo de ternura
A terra a quebrar-se
Na tua cintura
Respiras
Voas
Abres
Floresces
Onde dizem que é a noite
É a tua mão quente
O mar do teu sangue
A eclodir na semente
País
Terra de outra terra
Azul de outro céu
Rua de outro espaço
Entre o teu corpo e o meu
A altitude das aves
O aroma do céu.
Manuel Luís Feliciano
Um dia quero nascer
E não precisar de palavra alguma
Sorriso
Afecto
Ou verso
Que me adormeça
Ser como um rio
Que articula as águas
Sem cansar o pensamento
De nenhum olhar que me justifique
Só o bulício da águas
A bater nas pedras
Ser um lugar onde não me encontrem
Sou uma flor fora de todos os tempo
E não encontrei o verdadeiro lugar
Sou a desordem
O caos do universo
A distopia da perfeição
Dentro de mim há arvores
Mas não me perguntem o nome delas
Sou o lugar onde jardins tardios
Entreabrem a selva
Quero morrer desonradamente
Enterrado de preferência ao lado de um cão
Não sei olhar para o fora das coisas
Dentro de mim
Uma escuridão enorme
De um luar de Deusas
Que ao menos depois seja uma pedra tosca
Onde ninguém se assente
Que ninguém me chore
Ou se lembrem de mim
Só a leveza das folhas a explorar-me
O choro do sol a nascer em mim.
Manuel Luís Feliciano
Põe-se o rio
Põe-se o mar
Põe-se a abelha numa flor
E a minha boca de dor
Aberta na tua mão
Flor que o vento leva
No entardecer do teu beijo
O sol não se põe
Nem o teu ar
Nem o teu rubor
Nem o teu naufrágio
E eu vou contigo pelo chão
Por um caminho cortado
Num soluçar ancorado
Ouço o teu coração
Como uma pomba num seio
A morte a dizer que não
Por detrás do teu olhar
O dia é claro e inteiro.
Manuel Luís Feliciano
Ó meu amor, minha amada
Tu és flor de laranjeira
Por ti meus lábios em brasa
Percorrem a tua ladeira
Sigo silente na tua encosta
Sou como a sombra de um rio
E o meu braço luar que gosta
Do teu respirar tão macio
Os teus cabelos ao vento
Tiram-me o frio e a escuridão
Do teu beijo a contrair a terra
A tua pele é amor e perdão
Nas balas do pensamento
Os teus lábios põe fim à guerra.
Manue Luís Feliciano